Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior.
Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás!
Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado.
Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.
Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!
O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).
Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.
O terminal do
aeroporto fervilha de vida singular, mas plural de diversidade. Um casal de
Judeus ortodoxos, novíssimos, atrai o muitos olhares. Ela, com um bebé nos
braços, traja de azul escuro, camisola larga e comprida a combinar com a saia
de pregas pelo tornozelo, onde espreitam as meias grossas agasalhando os pés
nas sabrinas pretas. Na cabeça, um lenço igualmente preto. Ele, com o
costumeiro fato e chapéu pretos, as peiot (pequenos cachos) emoldurando o rosto
pálido. Passam os olhos pelos produtos de marca, detendo-se nas lojas de luxo,
mas nada comprando.
Há um certo ar
de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado.
No entanto, a
chegada de uma família japonesa arrebata as atenções. Homem e mulher
elegantíssimos, vestidos com roupa Prada e acessórios marcadamente
extravagantes, seguidos por dois rapazes adolescentes usando sapatilhas
Balenciaga, airpods a afastar qualquer som externo e olhares perdidos na sua
“onda”.
Demoram-se um
pouco na zona de onde o primeiro casal tinha acabado de sair, compram uma mala
Céline de mil e seiscentos euros e uma pequena caixa com dois pares meias de
homem Louis Vuitton de quinhentos.
Dirigem-se à
porta de embarque conforme chegaram, altivos e distantes, apenas com mais dois
sacos de compras e menos alguns euros na conta do cartão de crédito dourado.
Há um certo ar
de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado. Contudo, acrescente-se-lhe
uma ponta de inveja.
Na hora de
deixarem os sofás, há garrafas de água vazias, cascas de banana e invólucros de
bolachas e chocolates nas mesas baixas.
Dirigem-se à
porta de embarque de uma companhia low cost, arrastando as pequenas malas de
dimensão regulamentar.
Sigo-os, depois
de depositar o lixo no caixote mais próximo.
Aos
dezassete dias do mês de Outubro de dois mil e vinte e três, Maria apresentou-se
perante todos sem que ninguém a tivesse convocado.
Declarou
ser pertinente, tendo em conta a ausência instalada, apenas interrompida por
escassíssimas vezes.
Lamentou
a sua falta de inspiração, de agilidade no uso da escrita, de argúcia de
espírito.
Acrescentou,
ainda, que tinha vindo a tentar juntar palavras em frases, mas que os dedos se
declaravam dormentes, quer de teclas, quer de lápis e canetas. Assim sendo,
nada de palavras, quanto mais de frases!
E
nada mais havendo a tratar, deu por encerrada a sessão, da qual se lavrou a
presente acta, que, depois de lida, não necessita ser assinada.