segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Perda

 


Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior. 

Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás! 

Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado. 

Tinha 18 anos e julgou nunca mais amar. 


(Cigarretes After Sex - Cry)

domingo, dezembro 31, 2023

Luz

 


Que a Luz prevaleça e o Homem se deixe inundar dela!


Procuro uma alegria

                uma mala vazia

                do final de ano

                e eis que tenho na mão

                - flor do cotidiano -

                é vôo de um pássaro

                é uma canção.


           Carlos Drummond de Andrade


https://youtu.be/evmFy9F1ikk?si=eg_US9DO99_44ThA
Ricardo Ribeiro - Mondadeiras

quinta-feira, dezembro 28, 2023

Útero

Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.

Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!

O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).

Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.


quarta-feira, novembro 29, 2023

Curiosidades de viagem

 

(imagem daqui)

O terminal do aeroporto fervilha de vida singular, mas plural de diversidade. Um casal de Judeus ortodoxos, novíssimos, atrai o muitos olhares. Ela, com um bebé nos braços, traja de azul escuro, camisola larga e comprida a combinar com a saia de pregas pelo tornozelo, onde espreitam as meias grossas agasalhando os pés nas sabrinas pretas. Na cabeça, um lenço igualmente preto. Ele, com o costumeiro fato e chapéu pretos, as peiot (pequenos cachos) emoldurando o rosto pálido. Passam os olhos pelos produtos de marca, detendo-se nas lojas de luxo, mas nada comprando.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado.

No entanto, a chegada de uma família japonesa arrebata as atenções. Homem e mulher elegantíssimos, vestidos com roupa Prada e acessórios marcadamente extravagantes, seguidos por dois rapazes adolescentes usando sapatilhas Balenciaga, airpods a afastar qualquer som externo e olhares perdidos na sua “onda”.

Demoram-se um pouco na zona de onde o primeiro casal tinha acabado de sair, compram uma mala Céline de mil e seiscentos euros e uma pequena caixa com dois pares meias de homem Louis Vuitton de quinhentos.

Dirigem-se à porta de embarque conforme chegaram, altivos e distantes, apenas com mais dois sacos de compras e menos alguns euros na conta do cartão de crédito dourado.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado. Contudo, acrescente-se-lhe uma ponta de inveja.

Na hora de deixarem os sofás, há garrafas de água vazias, cascas de banana e invólucros de bolachas e chocolates nas mesas baixas.

Dirigem-se à porta de embarque de uma companhia low cost, arrastando as pequenas malas de dimensão regulamentar.

Sigo-os, depois de depositar o lixo no caixote mais próximo.


 
(Hania Rani - Nancy Jazz Pulsations)

terça-feira, outubro 17, 2023

Lavre-se acta

 

(Amadeo de Souza-Cardoso)


Aos dezassete dias do mês de Outubro de dois mil e vinte e três, Maria apresentou-se perante todos sem que ninguém a tivesse convocado.

Declarou ser pertinente, tendo em conta a ausência instalada, apenas interrompida por escassíssimas vezes.

Lamentou a sua falta de inspiração, de agilidade no uso da escrita, de argúcia de espírito.

Acrescentou, ainda, que tinha vindo a tentar juntar palavras em frases, mas que os dedos se declaravam dormentes, quer de teclas, quer de lápis e canetas. Assim sendo, nada de palavras, quanto mais de frases!

E nada mais havendo a tratar, deu por encerrada a sessão, da qual se lavrou a presente acta, que, depois de lida, não necessita ser assinada.



(Jonas Gewald - Transparent)

sexta-feira, setembro 22, 2023

Coração



(imagem daqui)

    

Coração


O coração, ao contrário da pele*,

não se renova ou perde de sete em sete anos.

Transforma-se ao sabor dos sentimentos,

torna excitante a permanência humana.

O coração pulsa, tem ritmo, fica louco

ou quase quieto de emoção.

O coração não aparece na foto

do documento da nossa identidade.

E porém...

O coração É a nossa identidade.

 

* ver Pedro Mexia, in "Duplo Império"

 

(Benjamim Clementine - Eternity)