domingo, janeiro 31, 2016

Acordar

(Marcelo Camargo)

A manhã veio clarear a penumbra do aposento acordando Leandro do sono reparador que há muito ansiava ter. A custo, abriu os olhos e reconheceu o quarto de Mariana. Sorriu e pensou que devia ter ido mais cedo. Devia ter-lhe dito que a amava quando, naquele dia, há dois anos atrás, ela o tomara no regaço e o deixara ficar ali, naquela cama onde agora se via a amanhecer. Levantou-se e saiu do quarto em busca de Mariana. O robe azul-turquesa repousava, meticulosamente dobrado, em cima da mesa da cozinha o que lhe pareceu assaz estranho. Pousado em cima da mancha azul, um post-it amarelo. Pegou-lhe e leu a mensagem, escrita numa letra miudinha, levemente inclinada para a direita.

Leandro, tens leite e queijo no frigorífico e pão de forma na despensa. (ele sorriu com o cuidado dela)A chave de casa (sorriu ainda mais. a chave...) está na porta. Quando saíres, dá-lhe duas voltas e deixa-a na caixa do correio. Vou viajar sem data de regresso.

Post Scriptum: Eu já não te amo.

Mariana



sábado, janeiro 30, 2016

Insónia

(William Dobell)


Há muito que a insónia atormentava Leandro. Experimentara os chás da Ti Zeferina, os comprimidos "naturais" da prima Joana, os diazepam e outros terminados em "am". Tentara mesmo acalmar a falta de sono com longos banhos de imersão bem quentes e copos de leite. Nada! Leandro sabia que era o clamor dentro da sua cabeça que o mantinha acordado noite adentro. O ruído contínuo e ensurdecedor da culpa. Meses de olheiras fundas e cefaleias fizeram-no procurar a única cura possível. Levantou-se bem cedo (afinal ainda nem adormecera e já eram seis e meia da manhã), dirigiu-se a casa de Mariana, bateu à porta e, quando ela a abriu, estremunhada no seu robe azul-turquesa, disse a palavra que lhe sonegara há uns anos atrás: "Amo-te!"
Mariana nem teve tempo de dizer nada. Ele entrou de rompante, percorreu o corredor até ao quarto, atirou-se para cima da cama e adormeceu.


Não sabe a narradora como procedeu Mariana ao saber-se usada como cura para os males da falta de sono. Fosse ela...



sexta-feira, janeiro 29, 2016

Memórias de Vergílio


Lembra-se como se fosse hoje. A mãe dissera-lhe que era preciso, que já não sabia acompanhá-la nos "estudos", que era melhor assim. E vira-se, aos doze anos, dentes cerrados e olhos muito abertos para que as lágrimas não viessem (vieram na mesma, afinal), no átrio escuro que dava para a pesada porta de madeira do colégio a ver descerem uma mala enorme onde vinham lençóis, cobertores, atoalhados e roupa sua, tudo com um número cosido, 28, aquele pelo qual respondia nas chamadas. 
A chamada era coisa para ser repetida vezes sem fim ao longo do dia. Chamada para a fila de saída do dormitório, chamada para a entrada da sala de estudo, chamada para o refeitório, chamada a cada início de aula, chamada para as raras saídas ao exterior. 
Fazia-se número com raiva dentro e chorava mas só deixava o choro vir, silencioso, na calada da noite, quando nas vinte camas de ferro alinhadas em duas filas de dez, frente a frente, dormiam dezanove meninas e ela velava. Nessas horas escuras em que a almofada se encharcava, olhava de quando em vez para a divisória à entrada, onde a freira que calhara tomar conta "das dos dez aos treze" roncava com tanta fúria que mais lhe parecia saída de um pesadelo.
Habituou-se, com o passar dos dias, a fechar os olhos com muita força e a imaginar que estava num conto em que todas as meninas eram irmãs felizes e a freira um bicho que as vinte tinham capturado nos jardins luxuriantes da casa vizinha, fechada numa jaula e, assim, impossibilitada de passear pelo meio das suas camas durante a noite, murmurando padre-nossos e avé-marias. Nesse pressuposto, adormecia.

Foi num desses dias, ainda mal fizera treze anos, autorizada a ir visitar a tia Ana, que descobriu "Manhã submersa" e, mesmo não entendendo plenamente tudo o que lia, se achou personagem de Vergílio Ferreira.


quinta-feira, janeiro 28, 2016

Dedos como palavras

(Eric Rose)


-Como será, quando se me acabarem as palavras? perguntou-lhe.
-Terás sempre as pontas dos dedos. respondeu.



quarta-feira, janeiro 27, 2016

À atenção do movimento grevista (era para ser grebista mas podia gerar uma guerra Norte/Sul)

Camaradas, há um xilreio novo! Porém, porfiem na luta, não vá ser um engodo para nos fazer quebrar! Olho no objectivo!

Greve pelo regresso dos xilreios



Encontrando-se o direito à greve consagrado no artigo 57º da Constituição da República Portuguesa e tendo a Presidente do Sindicato dos Bloggers entregue o pré-aviso, conforme exigido na Lei, este blog junta-se ao protesto pela ausência de xilreios na blogosfera. 
Camaradas, juntos venceremos!

Assim se vê a força de quem lê! 
Um, dois, três, queremos xilreios outra vez! 

Rendição

(Graça Morais)


A besta entrou, circundou-a, farejando-lhe o medo. Saltou-lhe ao pescoço, mordeu-lhe o ombro esquerdo e rugiu, a boca sangrando das feridas fundas. Deixava-se ficar, inerte, debaixo das patas fortes, cega à feiura do corpo hirsuto, surda à agudeza dos rugidos.

Há muito que deixara de lutar contra a saudade.


terça-feira, janeiro 26, 2016

O tropel do coração

(Tamara Lempicka)



Estranhava-se no sentir por de mais avassalador. Latejavam-lhe as têmporas, humedeciam-se-lhe os olhos, enrubesciam-se-lhe as faces. Não lhe sossegavam as mãos, agitadas em entrançar de dedos, em viagens pelo pescoço, enrolando as madeixas de cabelo negro em caracóis. O coração desarvorava em tropel descomedido apenas à lembrança daquele olhar coroado por sobrancelhas inquietas. Era, então, esse desassossego a que chamavam paixão, pensou Clara, a pele em arrepio na sua nudez despudorada!


segunda-feira, janeiro 25, 2016

Mapa de vida

(Mark Story)


Rugas. Mapa. História. Vida.
Rugas, todas as palavras condensadas num desenho único e intransmissível.



sexta-feira, janeiro 22, 2016

Outra



(© Daniel Anhut)

Dou por mim outra. Acordo a cada manhã para fazer o mesmo trajecto, parar nos mesmos sítios de sempre, ocupar-me no trabalho de há longos anos, multiplicar-me em tarefas que usualmente me entusiasmam, ouvir as pessoas de quem gosto ou outras que sou forçada a ouvir... Falta-me o golpe de asa para deixar de ser a outra que dou por mim a ser.


quinta-feira, janeiro 21, 2016

Do efémero das asas


(daqui)





Em torno ao candeeiro desolado

Cujo petróleo me alumia a vida,

Paira uma borboleta, por mandado

Da sua consistência indefinida.

Fernando Pessoa







A borboleta, ciente de que terem-lhe crescido asas a aproximava da morte, deixou-se adormecer na luz ardente que adivinhava fatal.


quarta-feira, janeiro 20, 2016

Ser casa




(Vincent van Gogh)


De todas as casas que habitei, nem todas me habitaram. Algumas houve que nunca foram capazes de me fazer sentir o ritmo do meu coração a par do seu, talvez porque não tinham as pessoas certas dentro. Outras, carrego-as debaixo da pele, irrigadas pelo mesmo sangue que o meu corpo.


segunda-feira, janeiro 18, 2016

Eclipse

(Katharine Hepburn by Bob Willoughby)



Sismo
  Abalo
    Urro
       Dor
         Abandono
            Deserto
              Eclipse





Saudade do Teu Corpo

Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?...

Anda a saudade do teu corpo (sentes?...)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado...»

É o teu corpo em sombra esta saudade...
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade...

Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra...
Vês?! A saudade é um escultor antigo!

António Patrício

sexta-feira, janeiro 15, 2016

Habitar



(Francesca Woodman, From Space, 1976, © Betty and George Woodman)

Havia tantos anos que habitava aquela casa que nem conseguia seguir os traços da memória até ao dia em que, pela primeira vez, pisara o soalho de carvalho. Curiosamente, recordava os sons e os cheiros de cada aposento, nesse passado longínquo. Sabia do ranger da tábua que dava passagem para a sala de jantar , bem junto à porta, do odor a cera acabada de espalhar por todo o lado, à excepção da cozinha, onde a mãe chegara cedo para cozer um bolo de canela e assar vitela com batatas novas. Ah, como era bom comer naquela cozinha grande, a mesa de madeira com bancos corridos a abrigar a fome da palavrosa família! Eram essas palavras que ouvia, agora, à mistura com as gargalhadas das mulheres perante as pantominas das crianças. Até conseguia repetir a cantilena do Pedro e da Mariana: 
Bichinha gata 
Que comeste tu? 
Sopinhas de leite 
Onde as guardaste? 
Debaixo da arca 
Com que as tapaste? 
Com o rabo do gato 
Sape, sape, sape!

Um arrepio percorreu-lhe o corpo agasalhado. Afinal, andara pela casa com o vestido vermelho sem mangas que a mãe lhe comprara aos quinze anos! Aconchegou melhor a manta polar nas pernas inchadas, acomodou-se na almofada que lhe amparava as costas ao sofá, fechou os olhos e adormeceu.
A casa habitava-a, agora, a ela.


quarta-feira, janeiro 13, 2016

Conversa interrompida


(Nuno Moreira)

Passava horas à conversa. Os anos tinham-lhe trazido aquela vontade de se aproximar das pessoas com uma palavra simpática. Depois, palavra puxa palavra, a conversa desatava-se e ia ficando, em amena cavaqueira, fosse o assunto trivial (a chuva que não pára, o cabelo da vizinha que passou de negro azeviche a amarelo palha, a abertura de um restaurante de peixe nas redondezas) ou de maior profundidade (a política ambiental, a ética no discurso político, as possíveis consequências do teste da Bomba H na Coreia do Norte).
Um dia, contudo, cansou-se das palavras. Pareciam-lhe todas já ditas, já ouvidas. Magoavam-na inexplicavelmente. Desgostou-se, até, de pensar nelas. Pegou numa tesoura e cortou a língua na crença de que cortaria, junto com ela, o pensamento.


domingo, janeiro 10, 2016

Júlio Pomar - 90 anos

(Júlio Pomar)


The tyger

Tyger Tyger, burning bright, 
In the forests of the night; 
What immortal hand or eye, 
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies. 
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand, dare seize the fire?

And what shoulder, & what art,
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain, 
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp, 
Dare its deadly terrors clasp! 

When the stars threw down their spears 
And water'd heaven with their tears: 
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger Tyger burning bright, 
In the forests of the night: 
What immortal hand or eye,
Dare frame thy fearful symmetry?


WILLIAM BLAKE


Hoje



(Katie Darby Slater)



Hoje 

Hoje sonho

Lá fora a escuridão
Lá fora o vento
Aqui, a música
Os olhos fechados
O mundo inteiro 

sábado, janeiro 09, 2016

Amor, girassol louco





Mi amor descubre objetos                              

mi amor descubre objetos                            
sedosas mariposas                                          
se ocultan en sus dedos                                

sus palabras                                                  
me salpican de estrellas                                

bajo los dedos de mi amor la noche              
brilla como relámpago                                  

mi amor inventa mundos en que habitan      
serpientes cuajadas de brillantes                    
mundos en que la música es el mundo          
mundos en que las casas con los ojos abiertos
contemplan el amanecer                                

mi amor es un loco girasol que olvida        
pedazos de sol en el silencio
                   

Isabel Fraire                                                  







O meu amor desvenda objectos

o meu amor desvenda objectos
sedosas borboletas
escondem-se nos seus dedos

as suas palavras
salpicam-me de estrelas
nos dedos do meu amor a noite
brilha como um relâmpago

o meu amor inventa mundos em que habitam
serpentes cravejadas de brilhantes

mundos em que a música é o mundo
mundos em que as as casas, de olhos abertos,
contemplam o amanhecer

o meu amor é um girassol louco que esquece
pedaços de sol no silêncio


Isabel Fraire traduzida por Maria Eu

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Fragrâncias

(Gérard Schlosser)

Da infância viajam o cheiro do frio invernoso (sim, o frio tinha cheiro a musgo nas paredes e a roupa seca junto à lareira), o odor dos biscoitos de limão nas tardes de Domingo (aqueles que se faziam de cor e se comiam até à mais mísera migalha em menos tempo do que o Diabo leva a esfregar um olho), a fragrância doce das açucenas florescendo nos canteiros sobranceiros à janela do meu quarto, o perfume suave do creme que a minha mãe usava no rosto.
Da adolescência, é a intensidade do aroma das mimosas em flor à mistura com o da maresia e a doçura inconfundível que rescendia das bolas de berlim acabadas de fritar, polvilhadas de açúcar e canela.
Hoje, o perfume inconfundível a evolar-se do pescoço à distância de um beijo.


quarta-feira, janeiro 06, 2016

Da contenção

(Egon Schiele)


Maria Isabel vivera tempos de míngua, durante os quais não se pensava para além da subsistência e se guardava a saia de pregas azul-marinho e a blusa branca com gola de renda para ir à missa de Domingo. Usava vestidos de chita ou de fazenda grossa (picava, a fazenda, a pele branca e fina de Maria Isabel) até estarem tão curtos que a mãe entendia aproveitá-los para panos do pó ou do chão, já que as pernas de fora começavam a atrair os olhares cobiçosos dos vizinhos. Isto, para não falar dos sapatos, os domingueiros, de verniz preto, e os da semana, de couro grosso, comprados uns dois números acima (algodão em rama na biqueira impedia os pés de saírem ao andar) e deixados quando os dedos se dobravam do aperto. 
Talvez por nunca ter esquecido esses tempos menos folgados, fosse contida nos gastos. Quando lhe perguntavam porque razão era sempre tão cuidadosa ao comprar um vestido ou um casaco, comparando preços, aguardando os saldos, respondia: A quem pouco teve, pouco basta.


domingo, janeiro 03, 2016

Encontro nocturno


(Shawn McNulty)

Meeting At Night 

The grey sea and the long black land;
And the yellow half-moon large and low;
And the startled little waves that leap
In fiery ringlets from their sleep,
As I gain the cove with pushing prow,
And quench its speed i' the slushy sand.

Then a mile of warm sea-scented beach;
Three fields to cross till a farm appears;
A tap at the pane, the quick sharp scratch
And blue spurt of a lighted match,
And a voice less loud, through its joys and fears,
Than the two hearts beating each to each!


 Robert Browning




Encontro nocturno

O mar cinzento e a extensa terra negra;
A meia-lua  amarela, imensa e baixa;
As pequenas e tímidas ondas saltando
Do seu sono em círculos de fogo,
Enquanto eu tomo a enseada, proa impulsiva,
E lhe sufoco o andamento na areia lamacenta.

Depois, uma milha de praia  cálida com cheiro a mar;
Três campos para atravessar até vislumbrar uma quinta;
Um toque na vidraça,  o raspar rápido,
A explosão azul de um fósforo aceso,
E uma voz mais  débil , de alegria e temor,
Depois, os dois corações batendo em uníssono!

Robert Browning traduzido por Maria Eu